quinta-feira, 28 de março de 2024

Home to Stay!


Ray Bradbury, et al (2022). Home to Stay!: The Complete Ray Bradbury EC Stories. Fantagraphics.

Ray Bradbury não era nenhum estranho ao que hoje chamamos de cultura pop. Muitas das suas inspirações vieram do cinema e literatura da sua juventude, e boa parte da sua obra literária foi revista para televisão, cinema e banda desenhada. Com tanta propensão para os tipos de cultura considerados menores pelo establishment e a sua ligação à ficção científica, é surpreendente que Bradbury tenha ascendido ao panteão dos grandes escritores americanos do século XX.

A história da sua relação com a EC Comics começa por um equívoco, com os editores a publicarem uma adaptação não autorizada de um dos seus contos. Bradbury poderia ter ido pelo caminho legal, processando-os, mas preferiu abrir a comunicação. Recebeu o dinheiro do conto, e iniciou uma colaboração com a editora, que adaptou para comics alguns dos seus contos. A ganhar, saímos todos. As histórias de Bradbury revistas sob o estilo de ilustradores clássicos como Wally Wood, Frank Frazetta, Al Williamson, John Severin e Joe Orlando, entre tantos outros, são pérolas dos comics. Al Feldstein é o argumentista que adapta a literatura de Bradbury para os caminhos da BD, sempre com um enorme cuidado e respeito ao tom original.

É sempre bom rever Bradbury, uma das leituras que me formou o gosto literário. A sua capacidade para encantar, mesmo nas histórias mais tétricas, e indiscutível domínio do conto com final inesperado, são o melhor que a literatura saída da Golden Age dos pulps e FC nos legou.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Conteúdos Gráficos e Violentos

 


É sempre divertido aceder a uma rede social e descobrir que fomos notificados por desrespeitar as regras comunitárias numa publicação. Faz parte do dia a dia de uso de redes sociais, e tem as suas ironias.


E que publicação minha alertou os algoritmos de moderação pelo seu conteúdo escabroso? Um artigo, muito interessante, sobre o trabalho artístico de Harold Cohen com o seu sistema Aaron, o grande precursor da arte gerada por inteligência artificial. Devo confessar que me é um pouco difícil encontrar conteúdos ofensivos nas imagens geradas pelo Aaron, e há uma deliciosa ironia em algoritmos de moderação de Inteligência Artificial a esbarrar em artigos sobre a história da Inteligência Artificial. 

Entretanto, para sublinhar os anacronismos deste sistemas, e num perfeito exemplo de hipocrisia, reparem no tipo de conteúdos que os algoritmos de sugestão da mesmíssima rede social me recomendam:




A mesma plataforma que me censura por alegados conteúdos escabrosos convida-me regularmente a visualizar vídeos de jovens de busto bem dotado e levemente coberto. 

Um pequeno fait divers que mostra a extensão da forma como as redes sociais comerciais são disfuncionais gaiolas douradas, fazendo uso de todo o tipo de mecanismos para capturar a atenção dos seus utilizadores, disfarçando a falta de ética, os dark patterns, a extremação de conteúdos e a perfilagem de utilizadores por detrás de bem intencionados pronunciamentos sobre a importância da segurança online e do bem estar dos utilizadores.

Lost+Found






















Londres, de dia.

 

terça-feira, 26 de março de 2024

Quadros Navais


Joaquim Soares (1972). Quadros Navais. Lisboa: Ministério da Marinha.

Um dos gostos do acaso dos alfarrabistas é cruzar-me com obras inesperadas. Este é um desses casos, uma obra coligida em dois volumes que reúne histórias marítimas. A sua autoria pertence a um contra-almirante da marinha portuguesa, que escreveu textos para um periódico lisboeta. Os relatos baseiam-se em histórias reais, que Soares dramatiza, e algumas histórias mais longas com recorte de romance. Não vale a pena esperar muito destes textos, têm o estilo típico de um militar reformado que escrevia no final do século XIX, cheios de frases gongóricas e apelos aos sentimentos de patriotismo. Em termos literários, não tem muito valor.

O que torna estes textos interessantes é o recuperar da memória de combates navais portugueses dos princípios do século XIX, entre o tempo das invasões francesas e da guerra civil entre liberais e absolutistas, com alguns desvios para as Índias. Os relatos tanto tratam os combates bem sucedidos, como das perdas. O tom patriótico é sempre exaltado, celebrando vitórias e exaltando aqueles que só se rendem quando nada mais há a fazer, mas isso, é o que se esperaria de um escritor que foi militar de alta patente. 

Estas história são interessantes, falam de um passado que raramente é abordado. Não são pérolas literárias. Quando o autor se alonga e tenta criar algo mais complexo, o resultado é de penosa leitura, e mesmo nos relatos curtos é precisa alguma paciência para os terminar. Vale pela evocação de uma história militar algo esquecida.

domingo, 24 de março de 2024

URL


It's Full of Stars
: Abstração futurista.

No correio (16): Novas vozes do fantástico português? Fico curioso.

Metropolis at 90: 5 early sci-fi films that paved the way for Fritz Lang’s classic: Alguns suspeitos do costume, que mostram que a relação do cinema com a ficção científica já vem de longa data.

A Science Fiction Films Made of Still Images: De volta e meia a memória da internet recorda-se desta obra sublime do inigualável Chris Marker.

LouriBD 2024: A Lourinhã tem um andamento cultural interessante, já alberga o festival Livros a Oeste, e agora inicia este novo festival dedicado à BD. Azar o meu, vou estar fora nesta semana, que a terra é praticamente ao lado de onde moro.

Novels About Science Fiction, recommended by Gary K. Wolfe: Como observa o artigo, a FC tem uma saudável obsessão consigo própria, é o género literário mais memorialista que existe, que recusa a deixar cair o seu passado no esquecimento. E não tem medo de rir de si próprio.

Terry Pratchett about fantasy ❤: Porque é sempre bom sonhar. E, porque desde sempre que o fantástico fez parte das nossas narrativas.

Miles de libros resumidos en sus cinco ideas más importantes: Se isto vos parece uma boa ideia, é porque não compreendem o valor da leitura. Não é o destino, mas sim o caminho o que nos valoriza.

British Film Board Reclassifies Classic “Mary Poppins” Movie As “Unsuitable For Children”: Vamos por partes. Na verdade, a linguagem típica de um filme antigo hoje choca-nos, e isso é natural, as atitudes sociais evoluem. E se avisar que um filme clássico tem elementos potencialmente ofensivos pode parecer, a quente, uma espécie de censura de progressitas incultos, na verdade tudo o que a BFM fez foi categorizar o filme para aconselhar supervisão de adulto. Ou seja, não estamos perante nenhum excesso de moral e bons costumes.

Five A.I. Characters I’d Be Proud to Call My Friend: Nem sempre a IA é representada nos filmes como elemento ameaçador e catastrófico.

Hate Revisited: the return of a '90s cult classic comic book: O regresso de Peter Bagge com um Hate para os tempos modernos pode ser uma boa coisa, mas também um recauchutar de ideias que eram pertinentes nos anos 90, mas hoje apenas acicatam a extremação de pontos de vista no dicurso público. Ou, talvez, ser uma vertente legacy act de uma voz que teve o seu tempo.

John Waters Is Making His First Movie In 20 Years: Excelente notícia para os fãs de Waters (como eu). Claro, esperem choques e polémica. Waters nunca se suaviza ou condescende.


The Masque Of Death
: Laivos de Poe.

A former Gizmodo writer changed his name to ‘Slackbot’ and stayed undetected for months: Das boas práticas de segurança digital. Se bem que se a equipa de TI for pequena e cheia de solicitações, é fácil estas situações acontecerem.

Se están publicando tantos libros escritos por IA que Amazon ha tomado una decisión: limitar la autopublicación: Os resultados do chico-espertismo no uso da IA, e da visão dos objetos culturais como meros conteúdos de consumo.

The Map is Eating the Territory: The Political Economy of AI: Ensaio longo, mas a dar muito que pensar. Pensamos a IA como uma tecnologia técnica, mas na verdade é uma tecnologia cultural, e isso sente-se nos seus impactos.

The Private Moon Lander Has Safely Touched Down on the Moon: É sempre uma boa notícia quando se dá mais um passo na exploração da Lua.

The ELIZA Archaeology Project: Uncovering the Original ELIZA: Antes dos LLMs, havia o ELIZA, o primeiro de todos os chatbots. E o deslumbre com as suas capacidades foi uma antevisão, em menor grau, do nosso corrente deslumbre acrítico com uma IA Generativa a que atribuímos elevadas capacidades e expetativas.

ChatGPT goes temporarily “insane” with unexpected outputs, spooking users: E quem nunca, soterrado com excesso de pedidos e solicitações, se passou e começou a parvejar em todas as direções, digo eu em perfeito modo de antropomorfização da IA.

Google Just Released Two Open AI Models That Can Run on Laptops: Modelos menos poderosos, mas suficientemente bons para usos offline.

Turing Complete Origami: E que tal criar origamis que simulam computação?

Lenovo’s Project Crystal is the world’s first laptop with a transparent microLED display: Parece saído de um adereço de ficção científica, é impressionante, mas será algo que queiramos usar no dia a dia?

Pluralistic: Vice surrenders: Vítima das redes sociais, ou da incapacidade dos seus gestores?

Inkitt, the self-publishing platform using AI to develop bestsellers, nabs $37M: Isto, é o chico-espertismo com IA enquanto modelo de negócio. Não choca que os escritores incorporem IA no seu processo de escrita. O que choca é esta ideia de escrita a metro, otimizada para vender muito, mas que esquece que se um livro vende, não é por existir, mas por ser interessante para os seus leitores (mesmo que seja uma banalidade literária).

Elon Musk queixa-se da exigência de criação de conta Microsoft para usar Windows: Bem, aqui o tipo tem razão. A forma insidiosa, o dark pattern que a microsoft usa para nos obrigar a usar contas deles, fazendo tudo para fazer parecer que não é possível usar um computador sem isso, é um dos piores exemplos de abuso de posição de mercado que conheço. Claro, em modo whataboutism, as práticas de Musk também não são flor que se cheire.

Man Running AI-Powered Porn Site Horrified by What Users Are Asking For: Ah, as profundezas da alma humana cruzadas com a IA Generativa. Se até fazem corar um pornógrafo, não sei se quero saber o quão depravados foram os prompts.


It's Full of Stars
: Abstração futurista.

Qué personajes históricos nacieron en tu ciudad o pueblo, localizados en un alucinante mapa interactivo: Quem nasceu onde, mostra-nos este interessante mapa interativo.

Middle School Teacher Accused of Selling Students’ Art Online: Como é que não me lembrei disto quando era professor de EVT? Porque na altura não havia etsy. Piadas farsolas à parte, há aqui um misto de óbvias falta de ética, pela ação, e estupidez com a incapacidade de se ser discreto.

Vice is abandoning Vice.com and laying off hundreds: Foi uma força fulgurante no jornalismo digital, e agora, nos processos que infelizmente são naturais na economia digital, está em vias de extinção. Pessoalmente, vou ter saudades do Motherboard.

WARNING: Transnistria May Organize a Referendum on Annexation to Russia to Support Russian Hybrid Operation Against Moldova: Fantástico. Mais uma crise fabricada pelo ego do boomer senescente Putin e dos seus putleristas.  A Transnístria deixou de ser aquela zona quirky onde a União Soviética nunca morreu, e ficou assumido o seu papel no jogo de xadrez sangrento que os russos decidiram travar.

How First Contact With Whale Civilization Could Unfold: Quando a circunspecta Atlantic especula de formas que têm tudo a ver com ficção científica. E se se usasse a IA para decifrar a linguagem dos cetáceos, iniciando comunicação com uma espécice cujos padrões comunicativos poderão ser milenares?

PUBLIC INTELLECTUALS HAVE SHORT SHELF LIVES—BUT WHY?: Certeiro, este ensaio que analisa a forma como os fulgurantes pensadores públicos passam a ser quase esquecidos e considerados como não tendo nada para dizer ao fim de alguns anos. Há várias razões para isto, desde o epocalismo ao natural declínio cognitivo. Mas o ensiao olha com atenção para o conformismo trazido pela fama. Ao atingir o sucesso, estes intelectuais afastam-se da base de conhecimento que lhes permitiu desenvolver as ideias que nos seduziram, e o sistema editorial e conferencista que os sustenta apenas reforça o que já fizeram, não lhes dando espaço para evoluir.

sábado, 23 de março de 2024

Ai Vs AI

 

Este ano, acompanhei alunos da escola onde trabalho na tradicional visita de finalistas a Londres. Num raro tempo livre, reparei que a habitual saturação hipercapitalista dos ecrãs de Piccadilly tinha sido substuída por algo diferente.

Foi neste sortudo acaso que me deparei com um projeto artístico de Ai Weiwei, o sempre provocante artista e activista chinês. Intitulada Ai vs. AI, está patente durante 81 dias nos ecrãs da praça. O número curiosamente específico prende-se com as experiências do artista nas prisões chinesas. O tema vai buscar inspiração ao confucionismo, no exprimir as grandes questões.


 Ao longo destes dias, sempre às 20:24 (não é preciso doutoramento em história de arte para perceber este simbolismo), surge uma nova questão colocada por Ai, ilustrada com deslumbrantes padrões visuais criados recorrendo a IA Generativa. 

E não consigo deixar de pensar no completo acaso de ter passado naquele local, à hora precisa do arranque da peça. As performances diárias são irrepetíveis, pelo que percebi.

Lost+Found